Como Milei repeliu as mulheres na Argentina da 'maré verde' feminista
Não foi apenas a economia. Os eleitores da Argentina também estão envoltos em um debate sobre o poderoso movimento feminista, após o candidato antissistema libertário Javier Milei prometer reverter os direitos das mulheres que colocam o país na vanguarda sobre o tema na América do Sul.
"Houve uma mobilização muito forte das mulheres contra Milei", cuja retórica "não só era antifeminista, mas também anti-mulher", disse nesta terça-feira (24) à AFP o cientista político Iván Schuliaquer, da Universidade San Martín, de Buenos Aires.
Milei, o segundo candidato mais votado nas eleições presidenciais de domingo, depois do peronista Sergio Massa, é conhecido por sua forte oposição ao aborto, seu compromisso de eliminar o Ministério da Mulher e sua negação da disparidade salarial entre homens e mulheres.
Pesquisas de opinião indicam que seus eleitores são homens, na maioria.
Enquanto alguns o acusam de ser uma "reação patriarcal" aos movimentos feministas, outros veem-no como um porta-voz da "maioria silenciosa", que tinha se "entrincheirado" diante do avanço dos direitos das mulheres.
"Há muito de reação patriarcal nas ideias de Milei", afirmou a candidata de esquerda, Myriam Bregman. "No mínimo, sentem que seus privilégios estão sendo questionados".
Em contraste, no comício de encerramento de campanha, no qual Milei foi recebido como uma estrela de rock com imagens de explosões ao fundo, um de seus apoiadores disse à AFP que as feministas "têm um discurso gravado".
"Eu não concordo com a modificação da língua espanhola", disse Moisés Achee, um operário de 57 anos, referindo-se ao uso da linguagem inclusiva. "Nem que me imponham certas coisas que, se eu não aceito, parece que sou eu quem exclui as pessoas. Não concordo em nada com certas ideias. Então, vamos com Javier Milei!".
O candidato de 53 anos convenceu seus apoiadores de que seria seu defensor diante destas inconformidades. "Não vou ficar pedindo perdão por ter pênis!", exclamou durante uma entrevista no ano passado.
- Dos lenços verdes para as trincheiras -
Em 2015, as argentinas lançaram o movimento Ni Una Menos (Nem uma a menos) para denunciar os feminicídios como a máxima expressão da violência de gênero.
A agitação deste movimento de reivindicações no país culminou em discussões sobre o direito ao aborto, que começaram em 2018 e foram promulgadas em janeiro de 2021, após uma segunda tentativa.
Durante este período, os lenços verdes das "pibas" - uma adaptação feminista dos lenços brancos das Mães da Praça de Maio - foram adotados por mulheres em todo o mundo.
Soledad Vallejos, jornalista especializada em questões de gênero e cofundadora da campanha Ni Una Menos, afirma: "A Argentina é a porta que abre as lutas por direitos na região, e quem mostra esse viés na política contemporânea".
"Se os setores conservadores conseguirem influenciar a sociedade argentina nisso, eles expandirão sua influência por toda a região", alertou Vallejos.
Enquanto a "maré verde" ganhava força, a reação de homens que se sentiam injustamente questionados também nascia em grupos de WhatsApp e redes sociais.
Agustín Romo, na época um influenciador e agora diretor de comunicação digital de Milei, afirma que "houve um exagero do feminismo, onde você era culpado apenas por ser homem".
"Gerou uma reação significativa, inclusive entre homens e mulheres não ideologizadas. Ou em mulheres que inclusive se deram conta de que estava fora de controle", de acordo com declarações de Romo ao elDiarioAR, em agosto.
Ele diz que "nesse momento", entre 2017 e 2019, "um amigo me colocou em um grupo de WhatsApp. E era uma trincheira" para os que se sentiam ameaçados pelo crescimento do feminismo argentino.
- A ascensão de Milei -
Em paralelo à formação dessas "trincheiras" nas redes sociais, um economista libertário era frequentemente convidado na televisão da Argentina, devido ao seu estilo excêntrico e a sua retórica antissistema que atraíam grande audiência. Era Javier Milei.
O confinamento provocado pela pandemia da covid-19 contribuiu para criar um ambiente propício para esse movimento de reação - que se enxerga como rebelde e libertador.
E, na Argentina do Ni Una Menos estava em evidência no país, Milei começou a clamar por "igualdade perante a lei" quando se trata de feminicídios. Ou seja, ele propõe a eliminação do agravante do código penal quando o motivo do crime fosse uma questão de gênero.
Em entrevista à revista "Perfil", o filósofo Ricardo Forster observou que Milei "tem um discurso que parece rebelde, mas, na verdade, é profundamente reacionário em termos de valores tradicionais".
"Há uma questão de masculinidade em jogo, um ressentimento em relação à masculinidade que se expressa no crescimento da extrema direita em muitas partes do mundo", continuou Forster, relacionando o fenômeno Milei com o de Donald Trump nos Estados Unidos, e o de Jair Bolsonaro, no Brasil.
Para Schuliaquer, enquanto a divisão entre os partidos rivais tradicionais da Argentina costumava ser de classe, agora, a contenda política pendente entre Milei e o peronismo será "de gênero e de geração".
(M.Travkina--DTZ)